19.5 C
Brasília
terça-feira, abril 30, 2024
-Publicidade-
spot_img

Governo tenta distensionar relação com o MST no “Abril Vermelho”

RELACIONADOS

DÉLIO ANDRADE
DÉLIO ANDRADEhttp://delioandrade.com.br
Jornalista, sob o Registro número 0012243/DF

Quer receber os textos desta coluna em primeira mão no seu e-mail? Assine a newsletter Brasília a quente, enviada às terças-feiras, 8h. Para receber as próximas edições por e-mail, inscreva-se aqui.

Nesta segunda-feira (15), a líder sem-terra Ceres Hadich dirigiu-se ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante evento no Palácio do Planalto para o qual foi convidada junto com outras lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

“Assim como o senhor, presidente Lula, que não renunciou à sua dignidade em detrimento da sua liberdade interrompida, nós nos comprometemos, perante o povo sem-terra e o povo brasileiro, a não parar de lutar enquanto houver povo sem terra e terra sem gente”, disse Ceres.

Era o final de um dia particularmente tenso em diversos pontos na zona rural no país. Como faz anualmente desde o massacre de Eldorado do Carajás em abril de 1996, o MST iniciou a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, também conhecida como “Abril Vermelho”, um conjunto de marchas e ocupações de terra e de órgãos públicos. No primeiro dia, já havia contabilizado 24 ocupações de propriedades rurais em 11 estados. Cerca de 30 ações diversas mobilizaram, segundo o grupo, mais de 20 mil famílias.

A resposta do governo federal à mobilização do MST veio com o evento no Planalto em que foi anunciada uma “prateleira de terras”, expressão criada pelo presidente em agosto do ano passado. Lula atribuiu ao ministro do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura Familiar (MDA), o ex-deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), a tarefa de apresentar a “prateleira”, isto é, todas as possibilidades de obtenção de terras, das mais diversas fontes, e que fossem além da ferramenta clássica de desapropriação de terras improdutivas. O conjunto de ações, que envolve estímulos à agricultura familiar, ganhou o nome de Terra da Gente.

O evento, acompanhado pela Agência Pública, reuniu, além de Lula e Teixeira, os ministros Marina Silva (Meio Ambiente) e Rui Costa (Casa Civil), bem como entidades além do MST, como a Contag.

Lula fez uma alusão, sem citar nomes, às mobilizações dos movimentos sociais como o MST. “A gente pode, enquanto trabalhador da cidade, reivindicar, fazer greve, pedir aumento de salário, plano de carreira. O trabalhador da vaca pode fazer greve, pode fazer um monte de coisa, e vocês [entidades de sem-terra] podem fazer o que vocês quiserem”, discursou.

“O nosso papel é ser honesto com o movimento social. É dizer aquilo que a gente pode fazer, aquilo que a gente não pode fazer; o dinheiro que a gente tem, o dinheiro que a gente não tem; para que a gente possa estabelecer uma relação muito sincera, muito cordial, muito democrática. Mesmo que em alguns momentos alguém torça para o Corinthians e outro torça para o Palmeiras, não tem problema nenhum. O que é importante é que a gente não perca o humor para fazer as lutas que a gente precisa.”
Lula

Por ocorrer na semana da Jornada do MST, o programa Terra da Gente foi entendido como uma resposta do governo às manifestações da principal entidade representativa dos sem-terra no país. Recentes declarações de lideranças do MST demonstram que a relação com o governo está longe de tranquila.

Em março, o líder nacional do MST João Pedro Stedile fez duras críticas ao governo. Em entrevista ao Tutameia TV, dos jornalistas Eleonora e Rodolfo Lucena, ele deu nota 5 para “o time da reforma agrária” do governo.

“Nós estamos há 14 meses [de governo Lula], meu Deus do céu. Procure lá no Diário Oficial. Em 14 meses, o Lula, até hoje, não assinou a desapropriação de nenhuma fazenda. Nunca aconteceu isso nos 40 anos do MST. De ficar 14 meses sem a desapropriação de nenhuma fazenda”, disse Stedile.

“E, quando tivermos oportunidade, provaremos ao nosso camarada Lula que [a reforma agrária] talvez seja uma das áreas do governo que está mais atrasada e em dívida com os trabalhadores pobres do campo.”

Stedile procurou isentar a figura do presidente. “O Lula tem dito pro Incra: ‘Bote a terra na prateleira pra que os sem-terra possam saber onde estão [as terras] e possam ter acesso sem ocupá-las’. Acontece que a prateleira, pelo visto, não tem ainda nem as tábuas e nem os pregos. Os nossos amigos do Incra e do MDA, ainda que o MDA se relacione com toda a agricultura familiar, estão em dívida.”

No final de 2023, o líder do MST já havia dito, para desconforto do ministro Paulo Teixeira, que o primeiro ano do governo Lula 3 havia sido o pior desde 2015 em matéria de novas famílias assentadas. Teixeira refutou a declaração. No evento desta segunda-feira, o ministro anunciou à plateia que o governo “incorporou” 50,9 mil famílias ao programa de reforma agrária no ano passado. 

O número não é reconhecido pelo MST, que estima que cerca de 105 mil famílias ainda aguardam lotes no Brasil – ou seja, o governo teria resolvido o equivalente a 50% de toda a atual demanda nacional em apenas um ano, o que seria praticamente impossível.

Ao detalhar o dado, o governo explicou que ele engloba assentamentos estaduais e municipais e regularização de beneficiários da reforma agrária em projetos de assentamento já existentes, como áreas de reserva extrativista e unidades de conservação, entre outros números. Essa regularização permite à família assentada acesso imediato a uma série de créditos financeiros.

Após uma queda brutal no programa de criação de novos assentamentos durante o governo de Jair Bolsonaro, no qual os processos ficaram praticamente paralisados, o governo Lula deseja retomar o processo de reforma agrária. O presidente do Incra, César Aldrighi, disse que recebeu o órgão com “o pior orçamento da história, paralisado, proibido de fazer vistoria em imóveis”: “O Incra foi destroçado no governo anterior.” 

Outro exemplo é que o órgão terá que recriar uma diretoria de obtenção de propriedades, que foi extirpada pelo governo Bolsonaro. O orçamento destinado à aquisição de terras será de R$ 520 milhões ainda em 2024, diz o governo.

Segundo Paulo Teixeira, a “prateleira de terras” envolve várias ferramentas: aquisição; terras adjudicadas; terras improdutivas; regularização de lotes; doação; glebas públicas; terras estaduais oriundas de dívidas; terras de empresas públicas; reconhecimento de terras estaduais e do ICMBio; e áreas de ilícitos.

As críticas de Stedile têm credibilidade e ressonância no governo muito maiores do que qualquer bolsonarista conseguiria fazer. É palavra de irmão para irmão, partindo de um setor político dos mais fiéis. 

Apoiador de Lula desde sua fundação, em 1984, o MST também trabalhou ativamente pela eleição do líder petista em 2022, inclusive “pelas circunstâncias de ter que derrotar o fascismo”, como disse Stedile na entrevista ao Tutameia TV. E foi o MST o principal organizador da “Vigília Lula Livre”, que durou os 580 dias de prisão do então ex-presidente em frente à sede da superintendência da Polícia Federal em Curitiba.

As críticas do MST à demora na execução do programa de reforma agrária não se restringem ao discurso, como bem demonstraram as ocupações desta segunda-feira.

A luta do MST pela reforma agrária completou 40 anos em 24 de janeiro – o marco fundante foi um congresso ocorrido em Cascavel (PR) no último ano da ditadura civil-militar (1964-1985). Quatro anos depois, o programa de reforma agrária foi incluído na Constituição como um compromisso do Estado brasileiro. Cinco anos depois, uma lei o regulamentou.

O Brasil redemocratizado, contudo, em grande medida falhou nessa promessa. Houve avanços ao longo dos anos, mas o passivo continua enorme. Quando a ditadura acabou, em 1985, segundo dados do Incra, o país registrava 9,8 milhões de hectares no programa de reforma agrária, com 117 mil famílias em 67 projetos de assentamento.

Em 2003, no primeiro ano do governo Lula 1, o país registrava 45 milhões de hectares para 544 mil famílias em 4,8 mil projetos da reforma agrária. Já em 2017, o Brasil somava 972 mil famílias assentadas em 9.374 projetos de assentamento, num total de 87,9 milhões de hectares.

Em contrapartida, como evidência da concentração da terra no país, apenas 1,4% dos imóveis existentes com mais de mil hectares ocupam, somados, 61% do território rural nacional. Outros 5 milhões de imóveis com até 50 hectares ocupam apenas 9% do território rural, segundo os dados apresentados pelo ministro Paulo Teixeira nesta segunda-feira.

O MST afirma que, ao longo da sua existência, já contribuiu para o assentamento de 450 mil famílias no país – o que seria quase a metade do total assentado no território nacional.

Do total de 105 mil famílias que aguardam assentamento, segundo o movimento, 70 mil são filiadas ao MST. Uma das maiores concentrações ocorre em Parauapebas (PA), com mais de 7 mil famílias acampadas.

O MST continua uma força viva no campo, para desconsolo do bolsonarismo mais tacanho e do ruralismo mais reacionário. Sabendo disso, o governo federal não traz todas as notícias que agradariam plenamente ao MST, mas procura distensionar a relação.

-Publicidade - spot_img

More articles

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui

-Publicidade - spot_img

ÚLTIMAS NOTÍCIAS